O crime por uma justa causa. A fraude cometida como alerta. Essas foram as razões para um cidadão de Olinda, na Região Metropolitana do Recife, fraudar o processo de aquisição de um VEM Livre Acesso, cartão que garante a gratuidade para pessoas com algum tipo de deficiência nos ônibus do Grande Recife. Indignado com o comércio dos cartões, o anônimo não só fraudou o processo como enviou todas as provas aos gestores do sistema para alertá-los sobre a facilidade. A biometria nos ônibus, implantada há mais de um ano, conseguiu reduzir em 90% a falsificação dos cartões de gratuidade, mas a concessão ainda é uma grande janela no sistema, que gera um prejuízo ao sistema estimado em R$ 4,704 milhões por mês.
Sei que o que fiz foi errado, mas como cidadão não suportei ver o comércio dessas carteirinhas… Qualquer pessoa mal intencionada pode conseguir uma carteirinha dessas, que dá direito ao deficiente andar de ônibus sem pagar, inclusive com direito a um acompanhante, como a que eu consegui”O denunciante anônimo enviou uma carta-desabafo para o posto de emissão do VEM, na Boa Vista, Centro do Recife, em que conta como foi fácil fraudar o processo. Diz que obteve na internet os papeis exigidos – no caso o formulário de solicitação da carteira de livre acesso e o atestado médico comprovando que era deficiente intelectual. Para completar o absurdo, inventou um nome e um registro de um médico e finalizou a fraude. O único documento real, verdadeiro, foi uma carteira de identidade encontrada na rua. “Sei que o que fiz foi errado, mas como cidadão não suportei ver o comércio dessas carteirinhas que existe na prefeitura do município de Olinda e que não deve ser diferente das outras. Qualquer pessoa mal intencionada pode conseguir uma carteirinha dessas, que dá direito ao deficiente andar de ônibus sem pagar, inclusive com direito a um acompanhante, como a que eu consegui”, diz o anônimo.
cidadão anônimo
O VEM Livre acesso falsificado foi aprovado em todas as três instâncias por onde passou: Centros de Referência da Assistência Social (Cras), Superintendência Estadual de Apoio à Pessoa com Deficiência (Sead) e o Grande Recife Consórcio de Transporte. O registro que o identifica é 90.02.00194747-4. Estava no banco de dados da Urbana-PE para ser emitido na hora em que o titular fosse buscá-lo. “Apenas o titular da carteira de identidade que deu origem à falsificação poderia retirá-lo após ser aprovado na biometria, é verdade, mas e se o fraudador fosse ele mesmo? Como a deficiência alegada é a intelectual, fica mais difícil identificá-la. Se fosse a física ou visual, por exemplo, seria mais fácil. Mas, mesmo assim, nós somos meros expedidores. Se a documentação consta em nosso cadastro é porque foi aprovada nas etapas anteriores. Não temos como questionar”, afirma a Urbana-PE, que se posicionou como instituição.
É a Urbana-PE, o sindicato dos empresários de ônibus, quem gerencia o sistema de bilhetagem eletrônica do transporte metropolitano e recebeu a denúncia da fraude. Como exemplo da limitação de função, a entidade lembra que numa ocasião um cidadão foi retirar um VEM Livre Acesso por deficiência auditiva e uma funcionária do Posto do Vem, com a mesma deficiência, percebeu que tratava-se de uma fraude. “Distraído, o cidadão chegou a responder a uma atendente quando questionado se estava entendendo o processo da biometria. Mas o que podemos fazer? A falha está no início do processo”, diz o sindicato empresarial.
O mais grave da denúncia-cidadã enviada à Urbana–PE é que ela expõe a falta de atenção dos órgãos que deveriam fiscalizar a veracidade dos documentos que embasam o pedido de gratuidade. A reportagem, numa consulta de dez minutos, conseguiu descobrir que o médico psiquiatra que assina o laudo atestando a deficiência intelectual do solicitante sequer está registrado no Cremepe. Na carta, o fraudador revela ter inventado o nome e o registro do médico. Mas, como então, isso não foi percebido na checagem dos documentos? Seja nos Cras ou na Sead? Ou no Grande Recife Consórcio e até mesmo na Urbana? Como alguém não descobriu?
Nem o Grande Recife Consórcio nem a Urbana-PE têm números que quantifiquem as fraudes na emissão de cartões de gratuidade no sistema. O setor empresarial é quem ainda arrisca alguns dados. Tendo como base números nacionais, defende que as falsificações continuam – apesar do investimento de quase R$ 30 milhões na biometria nos ônibus. Enquanto em sistemas onde há um controle rígido na concessão do benefício o percentual de cartões de livre acesso está entre 3% a 4%, na Região Metropolitana do Recife é de 8,4%, ou seja, mais do que o dobro. Em 2015, foram emitidos, por mês, uma média de 360 cartões VEM Livre Acesso. “Aparentemente vivemos uma guerra civil na RMR”, ironiza o sindicato.
É importante lembrar que o prejuízo com as fraudes, por maior ou menor que seja, é do sistema, ou seja, passa pelos passageiros que pagam a passagem – cerca de 34 milhões por mês. Chegamos ao valor de R$ 4,704 milhões com a ajuda da Urbana-PE. Por mês, 40 milhões de passageiros são transportados nos ônibus do Grande Recife e, desse total, 3.360 milhões usam o Livre Acesso. Como o sindicato empresarial estima que, por estarmos acima da média nacional de gratuidades em operação, temos 4% dos cartões falsificados ainda em circulação, imagina-se que, dos 3.360 milhões, 1.680 milhão (metade) são usos irregulares do benefício no mês. Multiplicando essa quantidade pela tarifa do anel A (usado em 80% do sistema), no valor de R$ 2,80, chega-se ao prejuízo de R$ 4,704 milhões. Como é comum se dizer no setor, ‘não tem almoço de graça.’ Alguém, sempre, terá que pagar a conta. E quase sempre é a população.
CONFIRA A RELAÇÃO DE DOCUMENTOS FRAUDADOS PELO ANÔNIMO E UMA SEGUNDA DENÚNCIA FEITA À URBANA-PE
A RESPOSTA DO PODER PÚBLICO
O poder público transfere responsabilidades e, de fato, assume pouco a culpa. Um joga o ônus da fraude para o outro e assim a vida segue. A reportagem enviou os documentos para as instituições que têm o dever de validar ou não a concessão do benefício. A porta de entrada são os Cras, mas é a Sead e o Grande Recife Consórcio de Transportes quem definem o processo. São eles que têm o dever de autorizar ou não um cidadão a andar nos ônibus de graça e com acompanhante. Representam o Estado de Pernambuco e o sistema de transporte metropolitano é gerido pelo governo estadual, através do Grande Recife Consórcio. Por isso, a reportagem os procurou.
O Consórcio conversou com o JC, a Sead – a quem cabe validar os benefícios – nem isso. Enviou uma nota que passa longe do problema da fraude executada pelo cidadão. Os mesmos documentos que estão relacionados nesta página chegaram às duas instituições. E mesmo assim, a Sead transferiu responsabilidades. “Para os casos em que há inconformidade com o direito e uso do cartão Vem Livre Acesso, a Sead não detém propriedade para fiscalizar e/ou investigar situações de fraudes ou uso indevido do mesmo. Uma vez que esta autonomia cabe à Delegacia de Crimes Contra a Administração e Serviços Públicos”, diz a nota.
Quando questionada sobre o fato de o documento ter sido validado mesmo com um registro médico falso – fato descoberto rapidamente pela reportagem –, a resposta foi a seguinte: “A questão do registro do médico no Cremepe, não está dentro da competência da Sead, uma vez que os registros médicos constam nos Cras’s, sob a gestão municipal.”
Carlos Eduardo Figueiredo, diretor de gestão do Consórcio, reconheceu que ainda há janelas para fraudes, mas lembrou que a biometria nos ônibus reduziu as falsificações. “Resolvemos 95% das fraudes. E mesmo assim, queremos zerar esse percentual. É tanto que todos os beneficiários terão que passar por um novo recadastramento em breve. Em 60 dias estaremos publicando no Diário Oficial a criação de uma junta médica para reavaliar a concessão inicial, como determina a Lei Estadual 15.552/15. Assim, iremos eliminar as fraudes possíveis no início do processo.” Vale ressaltar que a implantação da biometria nos ônibus foi um investimento do setor empresarial, não do governo. E que custou, até agora, R$ 28,7 milhões.
fONTE: JC Trânsito
retirado do Blog das PPPS.
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