domingo, 5 de agosto de 2018

Falta de segurança, conforto e agilidade afasta usuário do transporte público

Estudos apontam que essas deficiências são algumas das causas da queda no número de usuários em todo País: em 2017, foram 9,5% a menos em relação ao ano anterior


Pensados na década de 80, terminais integrados já apresentam esgotamento
Pensados na década de 80, terminais integrados já apresentam esgotamentoFoto: Rafael Furtado


Inverter a cultura onde o automóvel é o centro da mobilidadediante de um sistema de transporte público coletivo de passageiros que apresenta falhas de segurança, falta de conforto e de agilidade é uma tarefa complexa e de médio a longo prazos. Os terminais integrados já apresentam esgotamento. A tarifa única não é mais o principal atrativo para quem precisa pegar até quatro ônibus por dia. Estudos apontam que essas deficiências são algumas das causas da queda no número de usuários em todo País: em 2017, foram 9,5% a menos em relação ao ano anterior, segundo dados do anuário da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU). Significa que o sistema perdeu, por dia, 3,6 milhões de passageiros no Brasil.

Em Pernambuco, essa queda chega aos 6% no primeiro semestre de 2018, em comparação ao mesmo período de 2017, o que representa 150 mil passageiros a menos por dia. Segundo o presidente do Sindicato das Empresas de Transportes de Passageiros no Estado de Pernambuco (Urbana-PE), Fernando Bandeira, esses usuários migraram para o deslocamento a pé, de moto, de bicicleta, e parte disso se deve mesmo à crise econômica.

Nesse sentido, a “grande jogada” para o setor é atrair a classe média de volta ao transporte público. “Para isso, é preciso melhorar a qualidade do serviço, o nível de emprego no País e a segurança - o índice de assaltos a ônibus caiu 50% no primeiro semestre de 2018, comparado a 2017”, defende.

Hoje, 1,3 milhão de pessoas na Região Metropolitana do Recife (RMR) utilizam o transporte público coletivo, cuja frota é de 3.000 veículos atendendo a 403 linhas. No entanto, esse número em 2016 era de 1,8 milhão de passageiros. E é justamente o nível de qualidade que gera um dos maiores imbróglios no sistema atual. A começar pelo modelo de veículo que existe no Brasil, os chamados “caminhões encarroçados como ônibus” (chassi de um caminhão na lataria de um ônibus), que no Recife se torna ainda mais inadequado pela falta de ar-condicionado. 

Segundo ponto, seria a revisão do planejamento das linhas existentes. De acordo com o consultor de mobilidade Pedro Guedes, isso tem sido pouco discutido quando se trata de soluções para o transporte coletivo. "Pelo que conheço sobre o nosso sistema, as linhasimplementadas são as mesmas do sistema de bonde. Ou seja, temos um planejamento iniciado há cem anos dentro de uma cidade com uma dinâmica totalmente diferente do que temos hoje. E nunca foi feita uma total releitura para onde os ônibus devem ou não ir", afirmou. Somaram-se linhas às já existentes sem que houvesse um planejamento para isso.

O especialista cita o modelo de terminal de integração, idealizado na década de 1980, e diz que não necessariamente essa conexão entre as linhas precisaria ser física, modelo que já está esgotado. O Sistema Estrutural Integrado (SEI) é composto de linhas de ônibus e metrô em busca de ganho no deslocamento e redução do custo da tarifa (com uma única passagem é possível se deslocar para vários lugares). Ao todo, o SEI tem dez empresas operadoras, responsáveis por 185 linhas, mas o que havia sido instituído em 1994 ainda se encontra em expansão, e não tem prazo para ser concluído. "Desde 2010, conseguimos implantar 25 terminais, o que trouxe muito benefício à população. Quem sai do TI (terminal integrado) de Abreu e Lima, para seguir sentido subúrbio-cidade, só paga uma única tarifa (anel B)", exemplifica o diretor de operações do Grande Recife Consórcio de Transporte (GRCT) André Melibeu. 

Perda de tempo
No levantamento da NTU, é perceptível que só o apelo financeiro não é suficiente para atrair esse usuário. A vendedora Bruna Marques, de 22 anos, mora em Paulista e trabalha na cidade vizinha Olinda. Ela afirma que a falta de pontualidade das linhas é o que torna o “ir e vir” mais desgastante, mesmo utilizando o TI Pelópidas Silveira e pagando apenas uma passagem. “Preciso sair de casa às 6h para tentar chegar às 8h, mas nem sempre consigo por causa do horário de saída e de chegada dos ônibus”, diz. Além disso, ela critica a falta de segurança, principalmente no TI da PE-15. O mesmo transtorno foi relatado pelo vendedor Lucas Rodrigues, de 51 anos, que faz duas viagens por dias, com dois ônibus por trecho. "Os horários não conciliam, deveria existir uma organização melhor, principalmente em relação aos horários de pico." 

Melibeu diz que dar celeridade no trajeto dos ônibus é um desafio. "As faixas azuis são um avanço considerável, o problema é que, ao implantar 600 metros de faixa em uma via que já possui três faixas para carro individuais, as pessoas criticam."

maioria dos passageiros relata também o desconforto do processo de baldeação. Imagine: no primeiro ônibus, a pessoa consegue vir sentada até o terminal integrado. Depois, precisa descer para pegar outra linha, que está superlotada. Outro exemplo: fazer o sentido contrário ao seu roteiro para descer na integração e pegar o ônibus que vai para o seu destino final. “O tempo, que é o fator mais importante na escolha da maioria, aumenta muito nessas situações. A maioria prefere pagar mais e reduzir esse tempo de trajeto”, comentou Pedro Guedes.

BRT deveria ser solução
O que poderia ter sido uma solução, e até chegou a ser implantado, é o Bus Rapid Transport (BRT). O modal transporta 121 mil pessoas por dia, mas os gargalos na extensão dos corredores exclusivos, invadidos por carros, não dão a agilidade necessária e impedem que o veículo atinja a sua capacidade. No corredor Norte-Sul (Igarassu, Cruz de Rebouças, Abreu e Lima, Paulista e Olinda ao Centro do Recife), das 28 estações previstas, duas ainda estão em construção. De acordo com a Secretaria das Cidades do Estado, há planos de alargamento de vias ao longo desse corredor, e a obra deve ser concluída no primeiro semestre de 2019.

Já o corredor Leste-Oeste (Camaragibe até o Centro do Recife) ainda tem obras em andamento, e a secretaria justifica que os atrasos são causados pelo consórcio construtor, que abandonou a obra. Atualmente operam 16 estações das 22 previstas. “A IV Perimetral tem previsão para ser concluída neste semestre. Também está sendo elaborado o projeto para a implantação de quatro estações BRT de Camaragibe, onde será realizada licitação para a contratação de empresa que execute as obras”, informa a Secretaria das Cidades.

Além da implementação incompleta, algumas estações apresentam vários problemas estruturais. Vidros quebrados foram substituídos por placas de madeira. Sobre esta situação, o Grande Recife, informou que “os equipamentos com maior número de reparo e reposição são as catracas e vidros das estações” e declarou que “são investidos aproximadamente, por mês, R$ 68 mil com a manutenção de vidros nas estações de BRT”. 

Para quem usa o sistema diariamente, o ar-condicionado é o grande atrativo deste modal. O técnico de enfermagem Elieser Fernandes, de 42 anos, sai do TI de Camaragibe, no Corredor Leste-Oeste, em direção ao trabalho, no bairro de Paissandu, Centro do Recife. “Nunca tive problemas com o atraso do BRT. Sempre que preciso, ele está disponível. Estou muito satisfeito com o serviço, e as viagens são muito tranquilas”, diz.

Para o gerente comercial Luiz Neto, de 31 anos, que sai do bairro do Janga, em Paulista, com destino a Casa Amarela, Zona Norte da Capital, a frota do BRT poderia ser maior. “É inegável que eles ajudam muito quem depende do transporte público, mas já saem dos terminais superlotados”, criticou. Para Thawana Vieira, estudante de 21 anos, as estações poderiam ser maiores, e os usuários poderiam ser mais conscientes. “O uso é tranquilo, ele não atrasa. O único problema é que, na hora do pico, a estação, que é muito pequena, fica lotada. Tem também a questão do pessoal que entra a força. Isso é errado.” 

Trilho e bike são opções

O então estudante de engenharia, Daniel Valença, se sentiu aliviado quando ganhou um carro. No entanto, manter o veículo gerava um custo alto. “Voltei a usar o transporte público e chegava a pegar dois ônibus para ir à universidade. O uso da bicicleta era para viagens mais curtas, até que decidir migrei de vez para ela”, conta. Hoje ele é um dos coordenadores da Associação Metropolitana de Ciclistas do Grande Recife (AmeCiclo), que tem como principais eixos de ação o fomento ao uso de bicicletas e a democratização das vias públicas.

metrô é outro modal visto como alternativa ou complementação do transporte urbano, mas sofre com a falta de investimento no sistema. “A integração é necessária em qualquer lugar do mundo, mas temos uma questão muito específica em Pernambuco: há pouco metrô. Se compararmos com outras metrópoles, como Tóquio (no Japão, cujo território é bem limitado), a malha ferroviária é bem maior, com mil quilômetros”, explicou o especialista em engenharia de tráfego Stenio Cuentro. O Sistema de Trens Urbanos do Recife tem 71 km de extensão, abrangendo, além da Capital, Jaboatão dos Guararapes, Camaragibe e Cabo de Santo Agostinho. 

No Terminal do Aeroporto, o pedreiro Cosme Lopes, 43 anos, diz não ter do que se queixar. Ele sai de Pontezinha, no Cabo, para trabalhar no Jordão, no Recife. “A integração funciona. Para mim, está tudo ok”, comenta ele, que utiliza dois ônibus e um metrô. A diarista Tereza Conceição, 47 anos, todo dia se desloca de Prazeres para a Imbiribeira. Ela concorda que a integração funciona, mas pondera. “Acho que tinha que botar mais trens. Se bem que não tem como melhorar tanto na hora do pico, é muita gente mesmo. Junta o pessoal do metrô com o que vem dos terminais de integração e fica assim”, conta, em meio à multidão.

No Terminal da Joana Bezerra, começam a surgir as críticas. “A gente sai de uma lata de sardinha para entrar em outra. Você sai de casa toda perfumada e termina fedendo”, dispara a padeira Maria das Graças, 48. A mulher sai do Alto Santa Terezinha, na Zona Norte, para Boa Viagem, Zona Sul. “São dois ônibus e um metrô todo dia. Isso, sem falar nos abusos”, queixa-se.

Rio Doce /Barra de Jangada sem fim
Para muitos usuários, uma lenda urbana; para outros, uma ajuda. O fato é que a linha 910 - Rio Doce/Barra de Jangada tem muita história para contar. É o percurso mais longo de toda a RMR: são 37 km de extensão - a ida e a volta acumulam 77,11 km ao todo. As três maiores cidades de Pernambuco (Recife, Olinda e Jaboatão dos Guararapes) são cortadas por ele. De tão lendário, nem mesmo o Grande Recife Consórcio sabe especificar quando a rota surgiu, mas Rio Doce /Barra de Jangada é uma variação da linha de número 910, que conta com três formatos de itinerário: Rio Doce /Piedade I (que entra no Shopping RioMar quando sai da Zona Sul do Recife em direção à Olinda), Rio Doce /Piedade II (que entra no mesmo shopping apenas na volta, quando o percurso é Olinda-Jaboatão) e o Rio Doce /Barra de Jangada, que só passa perto do centro de compras.

A reportagem da Folha de Pernambuco pegou carona em um deles. Nossa viagem começou às 7h06, saindo do Terminal de Barra de Jangada. Só às 8h26 alcançou o bairro da Joana Bezerra. O percurso só terminou às 9h29, totalizando 2h24 dentro do coletivo - e porque a reportagem não foi até o terminal. 

Com um trajeto tão longo, amizades vão sendo feitas. É o caso da bancária Danielly Kelly, 29 anos, da estudante Thaís Félix, 24, e do funcionário de lan house Danilo Sousa, 25. Os três saem de Jaboatão e, de tanto tempo gasto juntos no trânsito, foram criando vínculos. “Eu conheci Danilo pedindo informação na parada do ônibus”, confessa, aos risos, Danielly. Primeiro, ela e Danilo ficaram amigos. Depois, foi chegando mais gente. “Essa amizade foi surgindo dentro do ônibus mesmo. Você morar em Candeias e trabalhar em Olinda é o tempo suficiente não só para conhecer uma, mas várias pessoas”, conta Danilo.

A duração do percurso oscila. De 2h20 em horários tranquilos a mais de três horas no pico. “Escuto música, leio, estudo, como, durmo. Acho que dá pra ver uns três episódios de série. E a gente vê de tudo. Vendedor, artista dentro do ônibus, ônibus lotado e todo mundo pendurado em cima do outro, briga. A gente passa de tudo aqui”, conta Danielly.

A bancária Danielly Kelly fez boas amizades durante o percurso do Barra de Jangada

Eu te ajudo e tu me ajudas


A amizade gerou um grupo no WhatsApp, onde eles compartilham informações sobre o horário dos veículos. “Eu sempre aviso eles quando pego ônibus primeiro. Às vezes, ele passa de 6h50, 6h55, e a gente nem está na parada”, explica Thaís. “Não tem horário certo. Isso confunde muito a gente. E o aplicativo que a gente usa não ajuda nesses casos. As outras linhas aparecem com horário normal, mas essa específica (Rio Doce /Barra de Jangada) sempre fica incerta. É bem confuso, porque são poucos carros”, relata Danilo.

Rio Doce - Barra de Jangada coleciona histórias ao longo de seu trajeto
Moradora de Barra de Jangada, a estudante Letícia de Talma, 18 anos, também queria mais veículos na linha. “Ele demora muito. Se tivesse mais veículos, seria mais fácil para chegar na Encruzilhada. Se não, tenho que ir para a Estação Tancredo Neves, pegar metrô e outro ônibus.

Metrô é um modal alternativo ao ônibus, mas a malha ferroviária da RMR precisa ser ampliada
Grande Recife não diz quantas viagens são feitas pelo Rio Doce /Barra de Jangada. Oficialmente, o órgão só contabiliza o total das três rotas feitas pela linha 910. Ao todo, são 97 idas e vindas por dia, levando 9.300 passageiros. E haja fôlego para quem trabalha diretamente nela. O cobrador Edmilton Isaías, 29, está há dois meses na linha. Ele conta que há dias em que só faz duas viagens. “São quase quatro horas para ir e voltar. Estoura muito a folha (de ponto), porque é muito imprevisto que acontece no caminho. Raramente a gente chega no horário previsto”, diz. Motorista do percurso, Alexandre Roberto, 31, tem sempre que chegar mais cedo do que o usual. “Tem que sair de madrugada, porque o horário da gente é um pouco diferente do pessoal da parada. Saio uma hora antes de pegar no trabalho”, comenta.

BRTs deveriam ser solução de mobilidade, mas as vias segregadas precisam ser completas

fonte: Por: Mirella Araújo, Tatiana Notaro e Diogo Calvacante (Especial para Folha de Pernambuco)

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