O atual silêncio do Poder Público e das empresas de transporte sobre o reajuste das passagens de ônibus na Região Metropolitana do Recife (RMR), cogitado no começo do ano, dá ao cidadão uma falsa ideia de trégua neste terreno. Embora o debate tenha sido abafado por soluções temporárias – como a suspensão provisória de reajustes por sentença judicial e a estratégia do governo de desviar-se do tema em ano eleitoral - o alto custo e a má qualidade do serviço público permanecem. Muitos desses problemas resultam de erros acumulados desde a licitação dos contratos das operadoras, em 2013, como já apontava uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE-PE) publicada no mesmo ano.
Comprometimento da competitividade; mau dimensionamento dos objetos de licitação; e critérios pouco claros são alguns dos achados do relatório de auditoria especial realizado pela Gerência de Licitações do TCE-PE, ao qual a reportagem teve acesso. O material avalia mais diretamente a concorrência de dois dos sete lotes de linhas de ônibus nos quais o Sistema de Transporte Público de Passageiros da RMR foi dividido. Esses dois lotes tiveram contratos assinados em setembro de 2013, que ainda estão em vigor no sistema BRT (Bus Rapid Transit), formado pelos corredores Norte-Sul e Leste-Oeste.
Na época, tanto a condução da licitação como o teor dos editais levou os auditores do TCE a concluírem que a economicidade e a modicidade da tarifa foram prejudicadas. Em outras palavras, o custo-benefício dos contratos para a administração pública e a garantia de um preço de passagens acessível a todos os cidadãos ficaram comprometidas no processo.
As peças soltas nas concorrências foram observadas pelos auditores desde uma primeira tentativa de licitação das linhas de ônibus, cujo objeto abarcava todos os sete lotes do sistema de transporte. O edital foi lançado em abril de 2013, mas as empresas não apareceram. Assim, o certamente foi refeito e, em junho do mesmo ano, uma segunda concorrência foi lançada levando em conta algumas recomendações do TCE. Porém, sem que todos os problemas estivessem sanados, outras irregularidades ainda foram acrescentados na lista, na análise dos auditores.
O segundo edital limitou a concorrência a apenas dois lotes correspondentes ao BRT, deixando 70% do sistema de transporte de fora da disputa. Além disso, as regras foram alteradas para permitir “a participação de uma quantidade ilimitada de empresas por consórcio”. Antes, os consórcios eram limitados a três empresas. Na prática, significa dizer que todas as antigas operadoras do sistema poderiam ter formado agrupamentos ilimitados para ganhar uma parte do bolo, algo que comprometeria a competitividade, na avaliação dos especialistas do órgão.
O relatório aponta que a concorrência, cujo valor global foi de de R$ 4,5 bilhões, resultou em apenas uma proposta para cada um dos lotes em disputa, sendo “cada uma dessas propostas feita pelas empresas que já operavam as linhas do lote antes da licitação (Consórcio Conorte, formado pelas empresas Cidade Alta, Itamaracá e Rodotur, no lote um, e a Rodoviária Metropolitana, no lote 2)”. Neste ponto, os auditores concluíram que“combinações e arranjos entre os operadores podem sugerir conluio”.
Para piorar o quadro, diz a auditoria especial, “essas empresas ofertaram exatamente o valor máximo que a administração se propõe a pagar pela prestação dos serviços”. O relatório ainda apontava falta de transparência no modelo de reajustes dos contratos previsto no edital do BRT. Isso porque a fórmula matemática não estava expressa na licitação, nem foram considerados os ganhos de produtividade das concessionárias e a transferência deles para os usuários, algo que poderia ajudar a reduzir o preço das passagens na RMR.
O levantamento do TCE também apontou incoerência do edital ao deixar em aberto a “possibilidade de indenizações aos operadores em caso de frustração de demanda”. Em uma situação de redução da frota, por exemplo, a aplicação dessa regra não levaria ao reequilíbrio do contrato reduzindo o seu valor, mas poderia resultar numa indenização aos operadores.
Esses e outros achados negativos levaram a equipe técnica do Grupo de Licitações do TCE a concluir, na época, que “o edital não deveria prosperar”. O processo, contudo, não foi suspenso porque os conselheiros do TCE julgaram que as irregularidades apontadas nos relatórios sobre as licitações dos ônibus foram meramente formais ou “decorreram de excesso de zelo da equipe de auditoria”, diz o julgamento da casa que considerou regular, com ressalvas, a auditoria realizada nos editais de licitação do Consórcio de Transportes da Região Metropolitana do Recife.
Novos contratos
Os cinco lotes que ficaram de fora da segunda disputa também foram objeto de um terceiro edital (Concorrência 03/2013), lançado posteriormente, e de auditoria do TCE. Diz o relatório dos auditores:
“O Edital de Concorrência 03/2013 apresenta algumas mudanças em relação ao edital da Concorrência 01/2013, e basicamente repete o conteúdo do edital da concorrência 02/2013. Lembra-se que na Concorrência 03/2013 estão em disputa cinco dos sete lotes em que o STPP/RMR foi dividido, pois os outros dois lotes já foram licitados na Concorrência 02/2013. (…) inconsistências apontadas quando da análise do edital da Concorrência 02/2013 continuam a ser apontadas na análise do edital da CC 03/2013. Estas inconsistências, segundo a opinião desta equipe técnica, comprometem a competitividade da licitação e, em consequência, a economicidade e a modicidade tarifária, comprometendo assim a prestação de serviço adequado (…) Esse comprometimento é devido (…) à divisão do STPP/RMR em apenas 7 lotes e à possibilidade de participação na licitação de consórcios com quantidade ilimitada de empresas, situação que pode fazer com que os atuais operadores se distribuam em arranjos nos quais todos continuem, após a licitação, a operar as mesmas linhas anteriores à licitação.”
Embora essa terceira concorrência tenha sido realizada, os contratos não foram assinados. Não há total clareza sobre os reais motivos que levaram a não assinatura, mas uma explicação viável estaria ligada a problemas nos editais. “Da forma como os editais foram feitos, a assinatura de novos contratos se tornou inviável do ponto de vista financeiro”, argumenta Pedro Joseph, advogado da Frente de Luta pelo Transporte Público. Sem contratos de concessão, as empresas atuam como permissionárias, algo que gera insegurança jurídica, avalia o advogado do Centro Popular de Direitos Humanos (CPDH), Thiago Scavuzzi. “Contratos de permissão têm menor complexidade e, por isso, até a fiscalização do cumprimento das normas por parte das empresas fica comprometida”, aponta.
É notável então que a má condução das licitações, como apontou o TCE, tem boa parcela de culpa na conta cara do transporte coletivo, paga pelo governo e, no fim da ponta, pelos usuários diários do serviço. Por ano, o governo injeta cerca de R$ 200 milhões em subsídios no sistema. Do outro lado, o cidadão é penalizado com passagens caras e serviços precários. Desde 2014, somente a tarifa A, a mais usada, passou de R$ 2,15 para atuais R$ 3,20.
No começo deste ano, um novo aumento de 11%, que elevaria o Anel A para R$ 3,55, começou a ser negociado entre o Consórcio Grande Recife, a Urbana-PE e o Governo do Estado. Por iniciativa da sociedade civil, que moveu uma ação para barrar o reajuste, uma sentença judicial determinou que um novo preço somente poderia começar a valer quando o estado realizar a Conferência Metropolitana de Transporte e cumprir outras determinações, como divulgar os custos das operadoras do sistema. A Conferência deveria ter acontecido no ano passado para eleger novos membros do Conselho Superior de Transporte Metropolitano (CSTM).
Segundo o Consórcio Grande Recife, a Conferência está sendo organizada, mas ainda não teve sua data divulgada. O Consórcio ainda informou que o estudo sobre a viabilidade de uma tarifa única no sistema de transporte coletivo da RMR, prometida desde a campanha pelo governador Paulo Câmara (PSB), ainda não foi concluído. A Frente de Luta pelo Transporte Público e alguns conselheiros do CSTM, inclusive, protocolaram um pedido de estudo técnico de implementação da tarifa única no último dia 12 de janeiro na Secretaria Estadual de Cidades, que não foi respondido. Por nota, a Frente informou que, no dia 2 de fevereiro, apresentou um pedido de audiência com o governador para tratar das questões relacionadas ao transporte e à mobilidade, mas também não obteve resposta.
O Grande Recife Consórcio preferiu não comentar os apontamentos feitos no relatório do TCE ao qual a reportagem teve acesso. A Urbana-PE, sindicato das empresas de ônibus, também não comentou o relatório do TCE, mas se posicionou em relação à não assinatura dos contratos dos cinco lotes restantes. Por nota, a Urbana-PE informou que a continuidade do processo “representa uma melhoria dos serviços prestados pelas operadoras e possibilidade de investimentos a longo prazo que, aliadas à priorização do transporte coletivo através dos corredores BRT e faixas exclusivas, impactará significativamente na qualidade do transporte público na região”.
Para quem usa o sistema no mundo real, e não no cenário idealizado pelas empresas, os efeitos nocivos do jogo de empurra entre o Consórcio Grande Recife, a Urbana-PE e o Governo do Estado, persistem e se agravam ano após ano.
Confira o relatório da auditoria especial do TCE: